Por Otávio Calvet*
Já havia definido escrever nesta semana acerca da arbitragem trabalhista, um dos meios alternativos para solução de conflitos à disposição da área, quando sobreveio a entrevista publicada aqui nesta ConJur com o ministro Gilmar Mendes.
Óbvio que a fala do ministro não será bem vista pela magistratura do Trabalho, creio eu, pois soa como um desprestígio, um reconhecimento de que a Justiça do Trabalho seria uma massa disforme, talvez um câncer em progressão que avança sobre um mercado de trabalho já em metástase.
Não recebo a fala do ministro como um ataque pessoal, até porque meu vínculo com a Justiça do Trabalho, que completa 30 anos em 2024, sempre gerou em mim a necessidade de olhar para a instituição acima dos interesses das pessoas que a compõem.
E um dos dramas que sempre me afetou foi justamente a excessiva quantidade de ações trabalhistas. Ainda que saibamos que a Justiça Comum é bem maior e mais congestionada que a Trabalhista, não se pode ignorar as cerca de 3,5 milhões de novas ações anuais que nos assolam. É muito, fato.
Estratégias, portanto, para reduzir a quantidade de litígios que tramitam pela Justiça do Trabalho, por óbvio, são bem-vindas, mas que efetivamente resolvam o problema e não apenas mascarem uma solução estatística.
Estratégias
Retirar da competência da Justiça do Trabalho as novas formas de se trabalhar, como o caso dos trabalhadores por aplicativos, além de inconstitucional, pois desde a Emenda Constitucional 45 de 2004 todas as relações de trabalho são competência desta esfera do Judiciário, apenas realocaria o problema para órgão diverso, assoberbando a já congestionada Justiça Comum.
Adicionalmente, a desconsideração de natureza trabalhista para esses novos vínculos, essas novas formas de trabalhar, impede, ou dificulta em demasia, a natural criação de uma principiologia protetiva do trabalho humano, para além da já conhecida relação de emprego.
Dito isso, precisamos, e agora vem a parte difícil, reconhecer que há anos a própria área trabalhista impede o avanço, seja de uma nova forma de proteção ao trabalho humano, seja de alternativas à solução de conflitos que não a estatal, via Justiça do Trabalho.
Arbitragem
A arbitragem trabalhista é um claro exemplo. Desde que estudo Direito do Trabalho ouço doutrinadores e colegas defendendo que a arbitragem não deveria ser utilizada para litígios individuais, por basicamente dois argumentos: um mais técnico, outro voluntarista.
O técnico seria a impossibilidade diante da natureza indisponível dos direitos trabalhistas. O voluntarista porque, sem a participação do juiz, e ainda que assistido por advogado, o trabalhador seria facilmente ludibriado, ou seja, a antiga presunção de má-fé dos empregadores e, pior, dos advogados envolvidos (além do árbitro).
Para demonstrar o acima afirmado, vale transcrever trecho da Agenda Político Institucional da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho), de 2014.
“Anamatra é contra a arbitragem e mediação para conflitos em relações de trabalho. Assim como ocorre com as Comissões de Conciliação Prévia, a arbitragem tem sido utilizada como instrumento para a prática de abusos e coerções contra os trabalhadores. Por vezes esses instrumentos são utilizados como forma de obter chancela para a renúncia do trabalhador a direitos sabidamente indisponíveis, tais como rescisões contratuais realizadas com desrespeito à legislação trabalhista. Ressalte-se, ainda, que a posição de hipossuficiência econômica do trabalhador em relação ao empregador é fator de desequilíbrio na utilização da arbitragem como meio de solução de conflitos no âmbito das relações individuais de trabalho. O tema foi tratado no 16ª Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Conamat), em 2012, quando os cerca de mil juízes trabalhistas participantes do evento afirmaram, na Carta de João Pessoa (PB), que “rejeitam a ideia de participação de pessoas estranhas à Magistratura na condução de audiências de conciliação, bem como da solução de conflitos individuais pela via da mediação ou da arbitragem.”
A mentalidade reinante no seio da magistratura mistura paternalismo com interesse próprio, pois além de se achar o senhor da proteção alheia, há o constante medo de extinção por perda de poder, o que na prática seria a redução não apenas de competência, mas do protagonismo como agente solucionador dos conflitos trabalhistas.
Aceitar mediação, conciliação extrajudiciais e arbitragem, sem participação da Justiça do Trabalho, seria um contrassenso para quem, apesar de reclamar cotidianamente do excesso de trabalho, não aceita perder espaço para terceiros, sob pena de cair num ostracismo.
Como se sabe, árbitros são de livre escolha dos interessados e, obviamente, devem possuir alguns requisitos que irão nortear a sua eleição, escrutínio a que não passa o juiz, que uma vez aprovado em concurso público já tem sua parcela de exercício de jurisdição.
E a partir do momento em que árbitros comecem a decidir sobre os casos trabalhistas, talvez a melhor interpretação do ordenamento jurídico não seja mais exclusividade do Poder Judiciário.
O fato é que o legislador, contrariando a vontade da maioria dos juízes, escolheu permitir o uso da arbitragem para litígios trabalhistas, como se vê do artigo 507- da CLT:
“Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.”
Interessante observar que a Lei da Arbitragem (Lei 9.307/96) somente autoriza seu uso para os direitos patrimoniais disponíveis (artigo 1º), o que revela uma quebra no mantra da indisponibilidade absoluta dos direitos trabalhistas, ou pelo menos exige uma maior reflexão sobre a questão.
A bem da verdade, os direitos absolutamente indisponíveis trabalhistas existem, e encontram-se basicamente fixados, atualmente, no artigo 611-B da CLT, na Constituição Federal, nas Convenções da OIT e outros tratados ratificados pelo Brasil, além das normas infraconstitucionais ligadas à saúde, segurança e higiene do trabalhador.
Direito e crédito
O que o legislador percebeu, e há muito se fala na doutrina, é que não podemos confundir a indisponibilidade de um direito com sua expressão patrimonial, ou seja, quando ele acaba se transformando em um crédito a favor do seu titular, crédito este que, claro, pode ser objeto de ato de disposição do interessado.
Este ponto é o que explica o porquê, por exemplo, de há décadas um juiz do trabalho homologar acordo judicial sobre verbas rescisórias, férias etc. Discute-se na ação trabalhista o crédito sobre tais direitos e não o gozo do direito em si.
Ainda que o citado artigo 507-A da CLT estabeleça um limite remuneratório, deve-se observar que esse patamar não é requisito para acesso à solução por arbitragem, mas apenas da forma de se eleger a o uso da arbitragem.
Conforme a Lei 9.307/96, há duas formas de se eleger o meio da arbitragem para solução de conflitos: uma prévia, ou seja, já inserindo em contrato de trabalho cláusula específica (cláusula compromissória), caso o conflito aconteça no futuro; e outra contemporânea ao conflito, pela qual os interessados simplesmente optam por não utilizar o Poder Judiciário como meio de solução, preferindo a arbitragem (compromisso arbitral), tudo nos termos do seu artigo 3º.
E o motivo é simples: a natureza jurídica dos direitos trabalhistas não se modifica de acordo com o valor da remuneração do empregado. Assim, os créditos trabalhistas de empregados com remuneração até duas vezes o teto do RGPS igualmente constituem direitos patrimoniais disponíveis, o que viabiliza não só o uso da arbitragem, mas a conciliação judicial, a conciliação extrajudicial homologada na Justiça e a conciliação em comissão de conciliação prévia.
As ferramentas, ainda que tímidas, já estão ao dispor do mercado de trabalho. Importante agora são os agentes sociais, empregados e empregadores, bem como a advocacia trabalhista, perder o medo da própria Justiça do Trabalho.
*Otávio Calvet é juiz do trabalho e é diretor da Escola da ABMT (Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho).
Fonte: Conjur
Confira outros artigos da editoria OPINIÃO clicando aqui.