Paulo Lindesay*
A partir da instituição do DASP nos anos 1930 por Getúlio Vargas, os cargos na administração pública brasileira eram providos mediante concursos a fim de evitar a nomeação de servidores por influência do poder econômico ou político. Isso começou a mudar com o Decreto-Lei 200, baixado depois do golpe militar de 1964, que abriu as porteiras para nomeações de servidores por processos “seletivos”, e não apenas concursos. Isso favoreceu o fisiologismo no Estado em larga escala.
No IBGE, por exemplo, figuras políticas influentes proeminentes da política
estadual fluminense emplacaram vários protegidos como servidores. Entretanto, isso
não aconteceu apenas na fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Alastrou-se por todos os órgãos públicos. As porteiras do serviço público estavam
abertas para atores simpáticos ao regime, principalmente os políticos tradicionais,
militares, empresários, famílias tradicionais nos serviços públicos e aposentados.
Entretanto, a Constituição Federal de 1988 instituiu pelo artigo 39, no âmbito
da administração pública direta e para as autarquias e fundações, o Regime Jurídico
Único e planos de Carreiras dos servidores. O Governo Fernando Henrique Cardoso
propôs, então, pela Emenda Constitucional n. 19, mudar o regime previsto na emenda
original para Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal. Surgiu
então uma dúvida jurídica sobre quais dos dois textos prevaleceria.
Diante dessa dúvida, em 2000, os partidos políticos PT, PDT, PC do B e PSDB
entenderam que se tratava de um ato inconstitucional e entraram com uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2135-4) contra a medida de Fernando Henrique.
A alteração do artigo 39º, por ser muito polêmica, foi votada em separado,
como PEC 173/1995. Conseguiu, porém, apenas 298 votos a favor, o que era
insuficiente para aprovação da emenda, que exigia no mínimo 308 votos Sim. Isso
caracterizou um erro material, impossibilitando a aprovação da alteração do artigo 39º
da Constituição Federal. A alegação de inconstitucionalidade baseava-se no fato de
que a emenda teria sido promulgada sem que ambas as casas congressuais tivessem
alterado a aprovação do texto em dois turnos de votação.
Na Sessão Plenária de 2 de agosto de 2007, a Corte deferiu parcialmente a
medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 39, caput, da Constituição Federal,
com a redação da Emenda Constitucional 19/1998, bem como conferiu efeitos ex nunc
(não retroage, não “retorna ao passado”). Ela só vale a partir do trânsito em julgado,
quando não cabe mais recurso para determinar a subsistência da legislação editada
nos termos da emenda. Essa liminar havia garantido a existência do Regime Jurídico Único (RJU) até os dias atuais.
Isso porque a relatora, ministra Carmem Lúcia, entendeu que a alteração da
regra que prevê o Regime Jurídico Único teria sido rejeitada no primeiro turno de
votação da PEC 173/1995, no instante em que o destaque para votação em separado
n. 9, que criou dúvidas sobre o ponto, não obteve 298 votos Sim. Concluiu, assim, que
houve burla ao requisito constitucional de votação em dois turnos em cada casa do
Congresso (art. 60, § 2º, CF).
Diante do voto da relatora, o ministro Gilmar Mendes antecipou seu próprio
voto e divergiu dela. Concluiu que não houve erro material, porque um texto
substitutivo, aprovado na comissão especial e votado no plenário, cumpriu essa
lacuna judicial ao alcançar a votação necessária nas duas casas legislativas. Agora eram dois votos divergentes que deveria conduzir ao julgamento da ADI 2135-4 no STF.
O Supremo Tribunal Federal (STF) colocou então no seu calendário de julgamento a ADI 2135-4 para o dia 06/11/2024. Esse julgamento acabou
com a divergência. Com a decisão de repercussão geral do STF, abriu caminho para
os governos, nas três esferas (Municipal, Estadual e Federal) extinguirem o RJU e
criarem no setor público carreiras em outro regime de trabalho, inclusive no regime
de CLT e temporários. Isso praticamente colocará em extinção a maior parte das
carreiras estatutárias do Estado Brasileiro e de seus servidores (as).
O mesmo cenário havia ocorrido em 1974, com a sanção da lei n. 6185, no governo do general Ernesto Geisel, que colocou os servidores (as) públicos federais
estatutários em quadro em extinção (QPEX), e possibilitou a migração para as carreiras
do Plano de Cargos da década de 70 (lei n. 5645). Com a recente decisão poderá
repetir-se esse cenário. A volta do Estado lateado!!!
Portanto, a reforma administrativa, seja pela PEC 32 ou por medida infraconstitucional, aumentará a possibilidade de extinção de carreiras e cargos nos serviços públicos. Essa situação poderá alterar o regime de trabalho dos servidores, saindo do estatutário para CLT oupara qualquer outra forma de regime. Isso significará a existência de mais de uma carreira em regimes diferentes nos órgãos públicos, causando uma divisão entre ostrabalhadores (as) públicos, reloteamento do serviço público e aumento dos conflitos geracionais entre trabalhadores (as).
* Paulo Lindesay – Diretor da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical
Canabarro/Coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida Núcleo RJ.