Jose Carlos de Assis
A CAPTURA DO ESTADO BRASILEIRO PELO RENTISMO
A capturado Estado nacional brasileiro pelo rentismo não é um projeto recente, nemisolado. Remonta aos governos militares, tendo sido acentuada,contraditoriamente, após a Constituição de 1988. Seu principal instrumento foia construção de uma imensa dívida pública que, a partir de determinado momento,sob efeito da correção monetária e cambial, não teve contrapartida eminvestimentos reais na economia. Essa dívida implica um pagamento anual dejuros, amortização e correção que deixaestreita margem para despesas públicas de interesse do povo.
Esse processo se refletiuprincipalmente nos programas de desestatização, privatização e precarização dosserviços públicos, paralelamente ao esmagamento pelas despesas financeiras do orçamento primáriodiscricionário da União. Isso implica sucessivos cortes nesse orçamento, a fimde sustentar o serviço da dívida pública, que não tem limites desde que foiintroduzida na Carta Magna um dispositivo fraudulento em seu artigo 166, queindicaremos adiante.
Assim, os ajustesfiscais sucessivos para pagamento do serviço da Dívida Pública abocanham, emmédia, cerca de metade do fundo público federal, em detrimento de despesasprimárias extremamente importantes para a população. Nestas se incluem despesascom funcionalismo, saúde, educação, saneamento básico, construção de moradiaspara pobres e, no atual momento de desastres climáticos extremos, os prejuízoscausados pelas terríveis enchentes e queimadas que temos visto em todo oterritório brasileiro.
Além dos ajustes anuaispara equilibrar o orçamento primário, com cortes, aos níveis exigidos parasustentar o serviço da Dívida Pública - que não podem ser cortados -, o“mercado financeiro” exige, através damídia a ele subordinada, ajustes estruturais que tornam ainda mais precárias ascondições dos serviços públicos. É o caso de terceirizações irrestritas nasáreas fins do Estado, contratos com organizações sociais (OS) e consultoriasprivadas e contratações precárias de servidores em todas as esferas de governo.
Chega-se ao absurdo dedesobrigar os entes federados de admitirem servidores públicos pelo regimeestatutário da lei 8112/1990. Agora, caminha-se em direção à criação defundações públicas de direito privado, com gestão privada, que poderão sealastrar por grande parte dos órgãos públicos, executando funções específicasde Estado. Com isso, tende a piorar a qualidade de prestação dos serviçospúblicos, pois se desmonta a maior parte das carreiras dos servidores, enfraquecendoas relações estáveis e garantias de empregos, inclusive dos concursados.
Tudo isso, detalhado mais adiante,está centrado no objetivo de desidratação das despesas públicas primárias, ondese contabilizam o Estado Socialbrasileiro, incluindo os serviços públicos, em favor do orçamento financeiro. Alémdisso, o governo liquida os valores do orçamento federal primário, mas não osexecuta em sua totalidade. O superávit daí resultante é também destinado ao pagamento da amortização da Dívida Pública. Dessaforma, o Estado fica na posição apenasde subsidiário (financiador) das políticas públicas, não mais de seu executorpleno.
Com o imenso valor doserviço da Dívida Pública, o Estado está forçado a garantir lucros crescentes evitalícios, através do mercado financeiro especulativo, ao grande capital rentistae às grandes corporações industriais, comerciais e do agronegócio,beneficiárias inclusive da chamada “moeda financeira”. Esta última é produto daSelic, criada ainda na ditadura, com a faculdade de garantir rentabilidadediária no over aos especuladores, bastando que estes deixem nos bancos suassobras de caixa de um dia para o outro.
Utilizada pelo BancoCentral, de forma imprópria, para supostamente controlar a inflação, a Selic defato antecipa a inflação futura com 45 dias de antecedência, quando é anunciadaao mercado, regularmente, nesse intervalo de tempo. Além disso, devido a suarentabilidade diária, e sua assimilação a uma taxa de juros elevada, elapromove a migração do capital produtivo para o capital rentista no over,refletindo-se na redução da produção e da oferta e contribuindo igualmentedessa forma para o processo inflacionário.
É ainda a Selic,equivalente, em suas operações no mercado aberto a uma taxa de juros, o principal instrumento para o aumentocontínuo da Dívida Pública, pois ela se tornou o principal indexador do sistemafinanceiro e da economia em geral. Nessa condição, recai também sobre o estoqueda Dívida. O resultado é um montante deserviço da Dívida Pública que, só de juros, ultrapassa R$ 1 trilhão anuais.
Entretanto, vamosrecuar até o Governo Vargas, no período do Estado Novo, para examinar como evoluiu um Estado indiscutivelmenteprogressista para o Estado de serviços públicos degradados, como o atual, comservidores em situações de trabalho cada vez mais negativas e desestimulantes,e que acumulou, progressivamente, a partir da ditadura, a gigantesca Dívida Pública que estamoscarregando ainda hoje.
O objetivo explícito deVargas era modernizar o Estado e a economia brasileira, em contraponto com asoligarquias rurais que funcionavam como uma espécie de estados independentes.Sua primeira iniciativa nesse sentido foi criar, em 1938, o DepartamentoAdministrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de acelerar a reformaadministrativa do Estado e impedir sua captura pelas oligarquias rurais.
Na busca de modelosexternos para orientar a organização do DASP, Vargas promoveu intercâmbios eenviou bolsistas a universidades do exterior, principalmente norte-americanas,mediante a promulgação do Decreto-lei n 0 776, que tomou o nome de Missão deEstudo no Estrangeiro, de autoria de Luís Simões Lopes. Os candidatos tinhamauxílios para afastamento do trabalho e estudos oferecidos por uma instituição privada, Institute of InternationalEducation (IIE), de Nova York, que distribuía bolsas em parceria com o governobrasileiro, a partir de seleção do DASP.
Portanto, a primeiratentativa de reforma administrativa do Estado estava totalmente baseada no modelo administrativo dos Estados Unidos.Criaram-se, ainda, órgãos nos estados,conhecidos como “daspinhos”, nos quais os diretores entravam permanentemente emcontato com o presidente por meio de interventores da ditadura Vargas. Contudo,o DASP foi um departamento que conseguiu construir uma tecnocracia, ou umaelite técnica, cujas ações desagradaram as antigas oligarquias. Mas só seria extinto em 1986, um ano após o final da ditadura e o início daredemocratização política do Brasil, em 1985.
Em 1952, o governoGetúlio Vargas havia aprovado a lei 1711,instituindo o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais, pelo qual parte dos servidoresera admitida por concurso pelo DASP. Esse estatuto perdurou até 1990. Emdezembro de 1990, foi sancionada a lei 8112, em substituição à lei 1711, que instituiu o novo Estatuto dosServidores Públicos Federais. Denominado Regime Jurídico Único (RJU), foi aprovadopelo governo Collor de Melo, e subsiste até hoje. O novo Regime estatutárioveio para substituir as admissões dos servidores públicos pós-Constituição Federal de 1988 por concursospúblicos. Até 10 de dezembro de 1990, esses servidores, na grande maioria, eramadmitidos no regime celetista, desde a década de 70, o que possibilitou o virtual loteamento do Estado entrepolíticos e pessoas influentes junto aos governos.
Em 1967, com a promulgaçãoda Constituição Federal da ditadura, havia sido editado o Decreto-lei 200, aprimeira reforma administrativa do governo militar, nunca revogado. Primeiromarco legal na tentativa de implantar a Administração Gerencial no Estadobrasileiro, pautou o fortalecimento do“Sistema de Mérito”, elaborando as diretrizes do “Plano de Classificação deCargos (PCC)”, e viabilizando a flexibilização das relações de trabalho nosetor público federal.
Com isso, permitiu-se aaplicação de dois regimes de trabalho: estatutário e CLT. É esse Decreto que oMinistério da Gestão e Informatização (MGI) e a Advocacia Geral da União (AGU)estão estudando para propor, neste ano, o novo projeto de lei com as diretrizesda reforma administrativa infraconstitucional.
No início da década de70 havia sido aprovada a lei 5.645/1970, estabelecendo as diretrizes para a classificaçãode cargos do Serviço Civil da União e das autarquias federais. Quatro anosdepois, em 1974, outra lei importante, 6.185, foi aprovada e sancionada peloentão presidente, general Ernesto Geisel.Ela avança em direção à concretização da reforma administrativa do governomilitar idealizada a partir da promulgação da Constituição Federal e doDecreto-lei 200, de 1967.
Esses dois instrumentoslegais possibilitaram que grande partedos servidores públicos, na década de 70, fosse admitida pelo regime da CLT. A menorparte
continuou admitida por concursos noregime estatutário da lei 1711/1952. São os setores reconhecidos como inerentesao Estado, isto é, com atividades que somente o Estado executa, sem correlaçãocom o mercado privado. Os demais servidores estatutários, regidos pela lei 1711/1952, que não migraram para as novas carreirasda CLT, ficaram em Quadro em Extinção ( QPEX).
Pela lei 5.645/1970, foi criado oPlano de Classificação de Cargos (PCC) no contexto da reforma administrativa do final da década de 1960,nunca revogado. Baseou-se no Decreto-lei 200, de 1967. A lei consistia emestruturar os cargos civis da União, chamados, na prática, de Classes, em Categorias Funcionais, que, porsua vez, eram reunidas em 10 Grupos: I – Direção e Assessoramento Superior; II– Pesquisa Científica e Tecnológica; III – Diplomacia; IV – Magistério; V –Polícia Federal; VI –
Tributação, Arrecadação e Fiscalização; VII –Artesanato; VIII – Serviços Auxiliares; IX– Outras atividades de nívelsuperior; e X - Outras atividades de nível médio.
Como se pode observar, o tratamentoprivilegiado dado a alguns setores do funcionalismo não nasce do acaso ou dapreferência de governos de plantão no Palácio do Planalto, mas é baseado em umarcabouço legal projetado pelos neoliberais, nunca revogado. São eles quedefinem quais os setores dos órgãos públicos que são considerados estratégicospara os governos e o mercado financeiro. A esses setores se dá tudo, aos demais,as migalhas.
Em 1974, o governo do general ErnestoGeisel aprovou a lei 6185, nunca revogada, com base no Decreto Lei 200 e comobase para mais uma tentativa de reforma administrativa e modernização do setorpúblico. Os servidores públicos federaisforam divididos em dois grupos: os admitidos por concursos públicos pelo regimeestatutário, com atividades inerentes ao Estado como Poder Público, semcorrespondência no setor privado, e os demais servidores federais, admitidospara cargos integrantes do Plano de Classificação no regime da CLT.
Portanto, as atividades inerentes aoEstado não alcançam todas as atividades do Estado brasileiro. Apenas aquelasexclusivas ou típicas dele e que são classificadas como essenciais à execuçãodo Poder estatal. Estão definidas no arcabouço legal, nunca revogado, noprojeto do MARE, a Reforma do Estado dos anos 90, capitaneada pelo ex-ministroBresser Pereira e baseada no senso comum dos servidores e de muitasrepresentações sindicais.
Grande parte das reformasadministrativas realizadas no âmbito da União desde a ditadura, e reforçadaspor iniciativas posteriores dos governos neoliberais, visaram principalmente àredução de custos com o funcionalismo, e não com a melhora do serviço público. Dessaforma, pretendeu-se, sobretudo, abrir espaço para cortes nas despesas doorçamento primário em favor do orçamento financeiro. Este, atualmente, consomesó de juros para o pagamento da Dívida Pública Federal cerca de R$ 1 trilhão emfavor dos rentistas no mercado financeiro especulativo.
A história da reforma administrativa do Estadonão finaliza aqui. Nos próximos dois artigosdaremos continuidade a ela mostrando os mecanismos de destruição do Estado Social brasileiro e da infraestruturaeconômica pública do País, representados pelas empresas públicas e estatais queacabaram sendo privatizadas ou sucateadas, em detrimento da qualidade do serviço públicoe em favor do rentismo parasitário.
Entretanto, antes mesmode concluirmos a primeira matéria desta série, fomos surpreendidos pela decisãoabsolutamente imoral do presidente do Senado, David Alcolumbre, de mudarmandatoriamente para 4/3 a jornada dos servidores da Casa, oferecendo-lhes,além disso, vantagens financeiras totalmente desalinhadas com as do resto dofuncionalismo público. A Câmara se prepara para seguir atrás, numa verdadeiraprovocação contra a maioria dostrabalhadores do País. Contudo, provando sua traição ao interesse público, oCongresso sequer havia aprovado o orçamento da União para 2025, o que deveriater sido feito até dezembro de 2024.
Isso não aconteceuporque os parlamentares, na sua grande maioria, chantagearam o governo Lula emrepresália à atitude do ministro do STF, Flávio Dino, que havia suspendido opagamento das Emendas Parlamentares. O próprio relator da Proposta de LeiOrçamentária para este ano, o Senador Ângelo Coronel, do PSD/BA, afirmou emvídeo que o Congresso Nacional somente a aprovaria o após a liberação dasEmendas, um verdadeiro escândalo!!!
Essa atitude políticado relator e dos parlamentares paralisou a estrutura de Estado. Até a presentedata, o governo federal executou apenas cerca de R$ 1,233 trilhão das despesasorçamentárias. Desse total, cerca de R$ 851 bilhões, ou 69%, foram executados em favor do serviço daDívida Pública Federal
(juros + amortização), um privilégio para os rentistas. Além disso foram liberados por MedidaProvisória cerca de R$ 4 bilhões para o setor do agro, outro setor privilegiado.De outro lado, a Medida Provisória 1286/2024, que garantiu a retroatividade dosreajustes salariais dos servidores, não teve tratamento prioritário. Depende daaprovação da LOA.
Foi aproveitando as vésperas docarnaval, quando o povo estava totalmente voltado para a folia futura, que oSenador Alcolumbre aprovou por baixo dos panos o pacotão de privilégios naCasa: aumentos dos salários dossenadores, folgas extras, reajuste de 65% na cota parlamentar, com impactofiscal de R$ 5 milhões anuais, e escala 4 X 3, que representará uma cargahorária menor para o trabalho no Senado. Para a maioria da classe trabalhadora,os parlamentares, cinicamente, querem aprovar a escala 6X1, o que significaráuma superexploração dela. Mudam as peças, mas o modus operandi continua o mesmo: garantir o privilégio do grandecapital financeiro rentistas e privilégios e benefícios para as classe política e empresarial. Enquanto isso,a população brasileira entra em 2025 com o custo de vida nas alturas!
Espera-se que a jornadados servidores federais contra esses abusos, que deve começar hoje no Rio e emoutras cidades e estender-se até sexta-feira, dê frutos e force o presidente doSenado a recuar de sua decisão temerária. Esta agrava os desequilíbrios entreas carreiras superiores e inferiores da administração pública, presentes principalmente no Legislativo e noJudiciário, onde já se concentram os maiores privilégios das categorias superiores,enquanto, para os que estão abaixo delas restam condições salariais e detrabalho vergonhosas.
J. Carlos de Assis*
Paulo Lindesay**
* Jornalista eeconomista, doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ.
** Diretor daASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da AuditoriaCidadã da Dívida Núcleo RJ.
Publicado originalmente na Tribunada Imprensa online (tribuna.com.br).
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