Por Vítor Monteiro
Nas últimas semanas, desde a publicação da Lei de nº 14.596/2023, uma série de consultas públicas têm sido feitas à Receita Federal do Brasil e à Procuradoria da Fazenda Nacional sobre como serão os novos procedimentos de transferência de preços para operações envolvendo empresas dentro do mesmo grupo econômico, incluindo relação e para empresas que não tem quaisquer ligações empresariais. Isso tudo diante do contexto do processo de entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Em tese, esse novo regime tão somente será válido a partir de 2024, mas para aqueles que decidirem fazer valer para 2023 têm até dia 30 de setembro para realizar a opção e comunicar à Receita Federal.
A mesma Receita Federal abriu um processo de consulta pública para que os contribuintes pudessem apresentar suas dúvidas, interpretações e referências, de forma gratuita, ênfase nesse aspecto, pois conforme as novas diretrizes da lei, o procedimento de consulta terá taxa de cobrança de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) – com validade de quatro anos para a solução de consulta (sendo cobrado mais R$ 20.000,00 para caso o contribuinte queira ampliar a extensão da validade do prazo da resposta). As perguntas e respostas ainda não foram publicadas, então essa matéria não será exaustiva, e ainda que já estivessem sido publicadas, não teria como sê-la, pois a própria lei abre uma margem de subjetividade para aplicação dos mecanismos de aplicação de preços e, em caso de omissão, solicita ao contribuinte que consulte o “OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022” (que está completamente em inglês) e tem nada mais nada menos que 658 páginas (https://read.oecd-ilibrary.org/taxation/oecd-transfer-pricing-guidelines-for-multinational-enterprises-and-tax-administrations-2022_0e655865-en#page11).
Não vai ser fácil a vida do contribuinte e do advogado tributarista nos próximos anos, pois, por causa da subjetividade, ocorrerão inúmeras autuações bem como recursos, até que seja estabelecida uma padronização do procedimento de transfer pricing. Mas afinal, o que é transfer pricing? Para que serve? Conforme a OCDE, é o preço de transferência, correspondente ao preço que é pago por serviços/bens transferidos de determinada unidade de uma empresa para outras unidades pertencentes a ela e localizadas fora do Brasil, em outros países. Desse modo, pode-se dizer que se trata do valor definido aos serviços ou bens transferidos entre empresas pertencentes a um mesmo grupo. Esta metodologia de controle de preços também se aplica nas operações com os chamados “paraísos fiscais”, ainda que a empresa estrangeira não faça parte do grupo da empresa brasileira. Mas onde está a subjetividade da situação? Em duas questões basicamente: no princípio do “Arm’s Length” – traduzindo ao pé da letra “pelo cumprimento do braço”; e também pelos cinco mecanismos oficialmente instituídos mais um sexto onde a Lei 14596 apresenta como “outros métodos.”
O princípio do “Arm’s Length” estabelece os termos e as condições de uma transação controlada deverão ser estabelecidos de acordo com aqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis. Eis que surge nova pergunta “o que é uma transação controlada”? É aquela com fundamento na análise dos fatos e das circunstâncias da transação e das evidências da conduta efetiva das partes com vistas a identificar as relações comerciais e financeiras entre as partes relacionadas e as características economicamente relevantes associadas a essas relações. Compreende as atividades econômicas do grupo multinacional e dos fatores que afetam o desempenho da operação comercial; a estrutura organizacional do grupo multinacional; as funções, ativos e riscos assumidos pelas entidades que fazem parte do grupo multinacional; e a cadeia de suprimentos e da sua agregação de valor por cada entidade do grupo multinacional.
Agora é que vem o “X” da subjetividade: os mecanismos de aplicação para calcular. O cálculo correto desse preço é importante para a empresa porque a mantém em dia com o fisco, dentro da lei, já que a não conformidade gera multas ao negócio. Além das sanções fiscais, a empresa compromete sua imagem. Não é tão simples assegurar que o preço de transferência seja adequado, pois vai além de respeitar a legislação de um país. Por exemplo, se existe uma unidade de uma empresa brasileira na Noruega, é preciso cumprir as exigências dos dois países, além do acordo de não bitributação e controle e combate à evasão de divisas existente entre os dois países. Envolve também bases de dados divergentes que irão interferir, muito embora possa existir cruzamento de dados nas informações disponíveis no Bloco K (o Speed Fiscal) com as informações do preço de transferência. Para evitar maiores problemas de fiscalização, a empresa precisa de uma base de dados consolidada e em conformidade; logo é interessante que haja uma centralização dos dados financeiros e orçamentários.
Mas quais seriam os métodos de aplicação? A lei de nº 14.596/2023 enumera oficialmente cinco mecanismos:
- Preço Independente Comparável (PIC), que consiste em comparar o preço ou o valor da contraprestação da transação controlada com os preços ou os valores das contraprestações de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
- Preço de Revenda menos Lucro (PRL), que consiste em comparar a margem bruta que um adquirente de uma transação controlada obtém na revenda subsequente realizada para partes não relacionadas com as margens brutas obtidas em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
- Custo mais Lucro (MCL), que consiste em comparar a margem de lucro bruto obtida sobre os custos do fornecedor em uma transação controlada com as margens de lucro bruto obtidas sobre os custos em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
- Margem Líquida da Transação (MLT), que consiste em comparar a margem líquida da transação controlada com as margens líquidas de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas, ambas calculadas com base em indicador de rentabilidade apropriado;
- Divisão do Lucro (MDL), que consiste na divisão dos lucros ou das perdas, ou de parte deles, em uma transação controlada de acordo com o que seria estabelecido entre partes não relacionadas em uma transação comparável, consideradas as contribuições relevantes fornecidas na forma de funções desempenhadas, de ativos utilizados e de riscos assumidos pelas partes envolvidas na transação.
Como foi dito acima, apesar de cinco métodos oficiais, a lei disponibiliza um sexto: “VI – outros métodos, desde que a metodologia alternativa adotada produza resultado consistente com aquele que seria alcançado em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas.” Como não achar algo mais subjetivo do que isso? E diante disto, qual seria o método mais apropriado? O artigo 11, §1º da lei afirma “Considera-se método mais apropriado aquele que forneça a determinação mais confiável dos termos e das condições que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em uma transação comparável, considerados, ainda, os seguintes aspectos:
- I – os fatos e as circunstâncias da transação controlada e a adequação do método em relação à natureza da transação, determinada especialmente a partir da análise das funções desempenhadas, dos ativos utilizados e dos riscos assumidos pelas partes envolvidas na transação controlada conforme previsto no inciso II do caput do art. 7º desta Lei;
- II – a disponibilidade de informações confiáveis de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas necessárias à aplicação consistente do método; e
- III – o grau de comparabilidade entre a transação controlada e as transações realizadas entre partes não relacionadas, incluídas a necessidade e a confiabilidade de se efetuar ajustes para eliminar os efeitos de eventuais diferenças entre as transações comparadas.”
Todavia, o §2º afirma expressamente: “O método PIC, previsto no inciso I do caput deste artigo, será considerado o mais apropriado quando houver informações confiáveis de preços ou valores de contraprestações decorrentes de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas, a menos que se possa estabelecer que outro método previsto no caput deste artigo seja aplicável de forma mais apropriada, com vistas a se observar o princípio previsto no art. 2º desta Lei.”
Como dito no início desta matéria, ela está longe de esgotar o assunto diante das subjetividades e da complexidade do tema, e os próprios órgãos públicos ainda estão se adaptando às novas diretrizes da OCDE e até mesmo durante o processo de interpretação e de tradução das normativas legislativas.
*Doutor Vitor Monteiro é advogado especializado em direito tributário e constitucional, formado pela UFRJ, com pós-graduação em relações internacionais pelo Curso Clio Internacional e em Comércio Exterior pela Fundação Aduaneiras. Atualmente faz mestrado em política e gestão estratégica na UFF
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