Em um artigo no jornal The Deseret News do dia 8 de dezembro de 1986, Douglas D. Palmer escreveu que os recrutas contemporâneos “queriam ser oficiais audaciosos que operam aviões de milhares de dólares e que personificam a elite”. Aqueles jovens – para o jornalista – queriam ser a personagem de Tom Cruise em Top Gun (Paramount Pictures, 1986): o Tenente-aviador Pete “Maverick” Mitchell.
O impacto daquela película que relatava as peripécias dos “melhores entre os melhores” pilotos de caça da Marinha dos Estados Unidos da América (em Inglês: United States Navy / USN) foi tal que, segundo dados de Kellman (2005), o recrutamento de jovens para a USN subira 500% após o lançamento da película; as outras Forças também observaram aumentos imediatos significativos de novos recrutas (PARKER, 2005).
Seja o recruta alguém que já tinha intenção e acelerou o processo, seja ele um jovem que foi inflamado por todo o embelezamento da vida na caserna retratada pelo diretor Tony Scott, é fato notório que o impacto do filme para as Forças Armadas foi positivo e muito bem-vindo.
Embora – ao menos no papel – institucionalmente as Forças Armadas estadunidenses (e, de fato, qualquer outra pelo mundo) não possam seletivamente endossar (ou parecer endossar) um produto comercial (como uma película de cinema) o que se observa é que os militares se utilizam de subterfúgios como “angariar recursos alugando locações e equipamentos” para, de fato, se utilizar da Industria do Cinema para glamourizar todo o Complexo acadêmico-militar-industrial que sustenta a maior parte do PIB estadunidense; assim arrebatam corações e mentes.
Top Gun foi lançado em uma conjuntura de descrédito popular pós-Vietnã, tanto para com a Casa Branca como para com as Forças Armadas, potencializada com a queda de Saigon em 1975 e o retorno dos jovens combatentes com transtorno de estresse pós-traumático (HENDIN,1991). Em 1986, com o sucesso da película e a glorificação do piloto de caça como crème de la crème do cidadão estadunidense, se intensificava a duradoura e produtiva parceria do Departamento de Defesa (em Inglês: Department of Defense / DoD) e Hollywood: os estúdios produziriam películas que justificassem os anseios do DoD perante a sociedade e o DoD proveria aporte de capital e disponibilizaria o aparato militar para as filmagens, como fez com o emblemático caça naval de quarta geração, o Grumman F-14 Tomcat (MIRRLEES, 2016).
Segundo dados desclassificados do Government Accountability Office (GAO) dos Estados Unidos da América, o F-14 Tomcat e – em certa medida – seu contemporâneo (o Boeing F-15 Eagle) da Força Aérea dos Estados Unidos da América (em Inglês: United States Air Force / USAF) foram concebidos no final da década de 1960 como solução para as problemáticas que a USAF enfrentou contra os MiGs na Guerra do Vietnã e de modo a enfrentar a crescente ameaça dos modernos MiG-29 e Su-27 da União Soviética.
Além de vetores de combate poderosos os Estados Unidos da América precisavam de “armas de propaganda” eficientes, assim, a concepção desses caças foi, essencialmente, um showcase do poderio tecnológico estadunidense nas décadas de 1970 e 1980 e do sucesso da interoperabilidade da USAF com a USN (LAMBETH, 2007).
As linhas imponentes dos caças aliadas com a – justíssima – “aura mística de sucesso” em torno do caça F-14 Tomcat e de seus pilotos – propagandeadas em Top Gun – tornou-o uma eficiente ferramenta de propaganda para o DoD enquanto ele esteve em serviço (de 1970 até 2006, tendo como zênite a sua ação televisionada na Operação Tempestade no Deserto, em 1991).
Em conjunto com a imagem dos caças se configurava a imagem do piloto de caça pleno, de sucesso, como uma representação do poder estadunidense, mas, ainda assim, um patamar alcançável para cidadão comum. Hoje, entretanto, essa imagem pode se tornar cada vez mais difícil de ser replicada com os novos equipamentos que, provavelmente, suplantarão os sucessores do Tomcat e do Eagle (que são o Boeing F/A-18E/F Super Hornet da USN e o Lockheed Martin F-22 Raptor da USAF): os caças de sexta geração (e, por conseguinte, seus pilotos).
Enquanto a China e a Rússia estão nos acertos finais de seus caças de quinta geração, desenvolvidos para enfrentar o F-22 Raptor e o F-35 Lightning II dos estadunidenses (em combate e “nas propagandas”), o DoD (por meio de sua agência de inovação, a DARPA) e seus tradicionais parceiros do setor aeroespacial (principalmente os grandes contractors como a Boeing, a Lockheed Martin e a Northrop Grumman) já conceituam e aportam recursos em programas de desenvolvimento do que se nomeia “Sexta Geração de Caças”.
Essa nova geração de caças, segundo Frank Kendall (secretário para “Aquisição, Tecnologia e Logística” do DoD), deverá servir como exemplo de como “estancar a atrofia das capacidades estadunidenses em desenvolver tecnologia militar de ponta” (KENDALL, 2012), buscando não repetir os equívocos do programa de desenvolvimento de caças de quinta geração Joint Strike Fighter (JSF), que resultou no problemático F-35 Lightning II.
Para French (2015), as deficiências do programa JSF trouxeram como efeito colateral uma estrondosa publicidade negativa para o DoD tanto no que cerne o equipamento e toda a enorme cadeia logística envolvida (com sua imagem de “baixa performance e baixa qualidade”) quanto ao seu custo de P&D e aquisição estratosféricos (acima de 1.5 trilhão de dólares estadunidenses, segundo o GAO, para a totalidade do programa).
Todos esses problemas levaram o DoD e os operadores do equipamento (todas as Forças Armadas dos EUA e os compradores estrangeiros) a observarem uma recorrente publicidade negativa do F-35 de tal maneira que não só os militares estadunidenses (notadamente, altos oficiais e pilotos da ativa que criticam o vetor, abertamente, aos veículos de mídia de massa) e os compradores/parceiros estrangeiros do programa (que começam a questionar contratos) mas, principalmente, os cidadãos estadunidenses começam a recorrentemente questionar sobre a necessidade e viabilidade de tal programa.
A sexta geração de caças, portanto, tem a missão de recuperar a “aura mística” de outrora, todavia, será que ela poderá resgatar o fascínio dos Tomcats de Top Gun caso ela resulte em caças autônomos? Será que a glorificação midiática da máquina e de seu operador poderão ser novamente construídas?
A basilar discussão nas altas cúpulas dos decisores político-militares de Washington é se essa nova geração (em desenvolvimento nos programas Next Generation Air Dominance da USN e no F-X da USAF) deve (ou não) resultar, basicamente, em um caça semiautônomo (ou totalmente autônomo) que execute tarefas dentro do conceito de “sistema de sistemas” (PURDY, 2012). Esse vetor de combate pode vir a ser, essencialmente, um drone com maiores capacidades de integração de armas (como as de energia dirigida ou eletromagnéticas), sistemas sofisticados de aviônicos, radares e propulsão (talvez hipersônica) mais eficientes e defesa ativa/passiva de ponta, além de mais robustas capacidades furtivas, enquanto traz maior segurança e comodidade de operação ao piloto do drone (que poderá operar a aeronave tal qual os drones de hoje, remotamente, praticamente de qualquer lugar do globo).
Os drones mais famosos já em operação, o Northrop Grumman X-47B (em uso pela USN em seus porta-aviões) e o Lockheed Martin RQ-170 Sentinel (utilizado pela USAF), são tais quais demonstradores preliminares – de sucesso – das tecnologias que serão empregadas na telemetria e controle dos caças de sexta geração, mas que levantam questões tanto técnicas (sobre ataques hackers aos equipamentos) como jurídicas (como decidir quem é imputável por crimes cometidos com drones).
O fator humano seria, então, cada vez menos necessário e tornaria toda a operação do equipamento mais segura e bem menos “romantizada” para poder ser utilizada por Hollywood, pois é perceptível para o cidadão comum (para quem o DoD deve justificar suas ações) e para os prospectivos recrutas (jovens buscando a adrenalina do combate) que o piloto de drone não tem a “virtuosidade” do aviador de caça clássico, aquele que arrisca a vida em combate pela nação e pelo país enquanto vive a vida “no limite da aventura”.
Embora ser piloto de drone seja – obviamente – muito mais seguro que ser o clássico piloto de caça e muito dificilmente se verá um morto em combate, o ganho exponencial em segurança, entretanto, faz com que a imagem de jet setter do piloto se esvaia, tornando sua capacidade de “marketing” para recrutamento bem menos “convincente”.
Maverick, o protagonista cool de Top Gun, em uma das mais antológicas cenas que permearam o imaginário da juventude no final da década de 1980 e início da década de 1990, tendo um imponente esquadrão de F-14 Tomcats estrategicamente colocado como plano de fundo, diz: “eu sinto a necessidade, a necessidade por velocidade”.
Supunha-se que em uma eventual sequência um novo protagonista não compartilhasse desse sentimento estando bastante seguro e confortável – em solo estadunidense – atrás do joystick de seu caça, mas, em 2022, de frente ao cenário de pós-Covid 19 e de baixa no recrutamento, foi lançada a sequência “Top Gun: Maverick” estrelando o mesmo Tom Cruise de sempre.
A película provaria que a “aura mítica” estava mais viva do que nunca ao levar para casa quase 1.5 bilhão de dólares em ingressos e arrebatar corações e mentes para as fileiras aeroespaciais.
Vai ver o DoD sentiu, novamente, a necessidade por velocidade.
*Luis Manuel Costa Mendez é Analista de Defesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências
FRENCH, D.. “Thunder without Lightning The High Costs and Limited Benefits of the F-35 Program”. National Security Network, 2015.
HENDIN, H.. “. Suicide and guilt as manifestations of PTSD in Vietnam combat veterans”. American Journal of Psychiatry, Vol. 148, No. 5, 1991, pp. 586–591
KELLMAN, S.. “Winning the Next War at the Multiplex”. The Texas Observer. Disponível em < https://www.texasobserver.org/1874-winning-the-nextwar-at-the-multiplex/ >. Acesso em 12 de outubro, 2016.
LAMBETH, B.. “The evolution of Airforce-Navy integration in strike warfare”. Rand Corporation´s Project Airforce, 2007, pp. 30–31.
MIRRLEES, T.. “Hearts and Mines: The US Empire”s Culture Industry”. UBC Press, 2016, pp. 175–176.
PALMER, D.. “Top Gun produces surge in Navy recruiting”. The Deseret News, edição de 8–9 de dezembro, 1986, p.B3.
PARKER, R..“The Armed Forces Need Another Top Gun”. United States Naval Institute. Proceedings 131, no. 12, 2005.
PURDY, J.. “The Future of the Fighter Pilot…Will There Be a 6th Generation Fighter?” United States Marine Corps Command and Staff College. Marine Corps University, 2012, pp. 16–17.
Unmanned Systems Integrated Roadmap FY2011- 2036. Office of the Under Secretary of Defense for Acquisition, Technology and Logistics. 2011.
U.S General Accounting Office. Staff Study. Department of The Navy. “The F-14 Aircraft”. Março, 1972.
U.S General Accounting Office. “F-35 JOINT STRIKE FIGHTER: Preliminary Observations on Program Progress”. Março, 2016.
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