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quinta-feira, 13 fev, 2025

opinião

A DUPLA DISTORÇÃO DA ECONOMIA

J. Carlos de Assis

Uma das distorções profundas da economia brasileira, cuja origem remonta ao golpe de 1964, é a correção monetária. Ela foi introduzida na institucionalidade monetária do País paraestimular a poupança individual, financiar o sistema habitacional e viabilizar sua captação pelo Estado através de títulos da Dívida Pública. Queria-se, com isso, copiar no Brasil o sistema monetário e financeiro norte-americano, sem seter, porém, uma de suas bases essenciais: uma relativa estabilidade inflacionária.

Como nossa inflação era muito alta, o setor privado só teria garantia de que não perderia dinheiro com suas aplicações em títulos públicos se houvesse um truque financeiro capaz de neutralizá-la. Esse truque foi a correção monetária, inventada pela dupla Campos/Bulhões, os pilares da política econômica da ditadura. É curioso que assessores do FMI chamados para ajudar na reforma financeira aconselharam os brasileiros a que não se fizesse a indexação da moeda. Entretanto, fizeram.

A correção monetária está na origem da gigantesca Dívida Pública do País acumulada ao longo dos anos, e que hoje ultrapassa os R$ 11 trilhões, gerando um serviço anual de cerca de R$ 1 trilhão. A ela não corresponde nenhum ativo real na economia. É puro passivo financeiro. Não há como pagá-la, especialmente porque ela cresce junto com o aumento da Selic, e a Selic cresce continuamente ou é mantida em nível elevado para supostamente assegurar a meta de inflação.

Com isso, a única coisa certa que se pode dizer sobre a economia  é que, em algum momento do futuro, ou vai-se estrangular de vez o Estado Social para pagar o serviço da Dívida, ou teremos de voltar aos anos 1980 e 1990, decretar uma moratória e renegociá-la. A questão, portanto, será colocada em termos de escolher entre atender às necessidades essenciais da população, ou nos curvar ao sistema financeiro global, que tem na economia brasileira uma das principais fontes de ganhos especulativos.

Além disso, há outro fator que pressiona por uma saída da armadilha da dívida em que nos metemos: trata-se dos desastres climáticos extremos. Eles continuarão ocorrendo de forma implacável, em todo o mundo e no Brasil, exigindo recursos crescentes dos setores públicos para as ações de assistência às vítimas, de reconstrução de infraestrutura e de prevenção. São despesas que terão de ser incluídas no orçamento primário, deslocando daí outras despesas essenciais.

Nessas circunstâncias, além de uma reforma financeira que eventualmente inclua pelo menos o congelamento do over – e seu pagamento em precatórios de longo prazo -, só será possível enfrentar os desafios futuros pelo crescimento do PIB às taxas mais altas possíveis, disponibilizando mais recursos reais para atender às necessidades da sociedade. Temos condições para isso, se nos afastarmos dos fetiches do equilíbrio ou do superávit orçamentário, que travam a economia num nível medíocre de expansão. Podemos seguir a Índia e a China, dois outros membros do BRICS, que estão na vanguarda do crescimento mundial.

Entretanto, para crescer a altas taxas é fundamental principalmente a mobilização da iniciativa privada, em articulação com o Estado. A este cabe realizar os investimentos básicos de infraestrutura, por um lado, conforme aconteceu historicamente no Brasil,  assim como estimular o setor produtivo privado a acompanhar o aumento da demanda de bens e serviços por uma sociedade que se caracteriza por um imenso mercado, hoje subatendido, especialmente dos setores populares.

A iniciativa privada no Brasil tem dupla personalidade. O capital produtivo migra continuamente para o setor financeiro especulativo, e depois volta para sua base, trazendo junto com ele as taxas de juros mais altas do mundo (Selic). Com isso, compensa eventuais perdas operacionais com os ganhos da especulação no mercado aberto ou com a “moeda financeira”, que rende juros diários pelo simples fato de alguém ter no próprio nome uma conta corrente num banco comercial.

Com isso, convergem para o mesmo ponto as duas principais aberrações da economia: a correção monetária e a Selic, que se tornou indexadora de todo o sistema financeiro e da economia em geral. Como é usada também para manter a inflação dentro da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional, toda a economia, e não apenas a Dívida Pública, está amarrada à Selic que, por ser antecipada de 45 em 45 dias, acaba puxando para cima a inflação real calculada pelo IBGE.

Uma reforma financeira para valer implicaria assegurar um aumento dinâmico da procura e da oferta no mercado de bens e serviços, a fim de assegurar o crescimento econômico sem inflação. Isso,  como tenho insistido, é perfeitamente compatível com déficit primário até um nível próximo de 3%, como acontece nos países do euro. Contudo, para que haja aumento da oferta ou da produção, não basta ter demanda. É preciso que os empresários tenham condições favoráveis para investir e produzir.

Isso quer dizer acesso a taxas de juros mais baixas. E não haverá taxas de juros mais baixas enquanto existir a Selic. É ela que tem que ser destruída, junto com a correção monetária, para consertar a economia, pois a interação entre elas provoca praticamente todas as nossas mazelas: aumento da Dívida Pública e do respectivo serviço, existência da “moeda financeira” de que os pobres estão privados, extrema concentração de renda e de riqueza, e especulação financeira desenfreada.

Publicado originalmente na “Tribuna da Imprensa” online.