Os conflitos históricos entre Capital e Trabalhoevoluíram no final do século XIX num contexto tecnológico ainda incipiente, em que essas duas categorias econômicas e sociais tendiam a se conciliar apenas num ponto: ambas se expandiam de forma simultânea, já que o avanço do Capital requeria um número cada vez maior de trabalhadores, o que reforçava a força dos sindicados na criação e reivindicação de direitos.
Essa situação se inverteu a partir do início do século XX e, principalmente, a partir da década de 1980, quando os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo em que favoreciam a concentração de capital e renda, começaram a dispensar trabalhadores na área produtiva e enfraquecer os sindicatos. Além disso, no Brasil, favorecido por políticas monetárias de juros altíssimos, o Capital produtivo migrou para a especulação no mercado financeiro, onde a participação relativa do Trabalho é pouco significativa.
Isso criou uma contradição profunda entre Capital, em suas duas versões, e o Trabalho, fragmentado e disperso em várias atividades, o que se reflete na grande confusão política que se estabeleceu com a proposta de redução da jornada de trabalho de 6×1 da deputada Erika Hilton, do PS0L, apoiada integralmente pelo PT. Curioso é que essa proposta não veio a partir da mobilização sindical, mas por iniciativa parlamentar. E a razão disso é que os sindicados estão drasticamente enfraquecidos.
Segundo o IBGE, enquanto o mercado de trabalho avançou rapidamente nos últimos anos, a sindicalização perdeu força. Em 2023, apenas 8,4% dos trabalhadores ocupados eram associados a sindicatos, o equivalente a 8,4 milhões de pessoas. Foi uma queda de 7,8%, ou de 713 mil pessoas, em relação ao ano anterior, quando havia 9,1 milhões de ocupados sindicalizados (9,2% do total), chegando novamente ao menor patamar da série históricainiciada em 1912 (16,1%).
Na nova configuração do mundo do Trabalho, afetado pela tecnologia, o número de trabalhadores celetistas, no Brasil, chega a 47,5 milhões, o de microempresários individuais a 15 milhões e os informais a 39 milhões. É preciso fazer uma avaliação realista do impacto que a redução do tempo de trabalho, para além do que representa para o trabalhador individual, representa para a economia como um todo e para o financiamento da Previdência, que é a base de segurança social para toda a sociedade.
Os principais contribuintes para a Previdência são os trabalhadores celetistas e seus empregadores, e os servidores públicos com regime previdenciário próprio. Os microempresários dão uma contribuição de 5% do salário mínimo mensalmente. Entretanto, o regime previdenciário é universal: todo cidadão ou cidadã brasileiro tem direito a seus benefícios, aí incluídos os quase 40 milhões de trabalhadores informais que geralmente não contribuem para o sistema, ou contribuem pouco. (Note-se que a Constituição veda explicitamente a redução de benefícios previdenciários, o que põe em cheque as tentativas atuais da equipe econômica de reduzi-los.)
Assim, a questão da jornada de trabalho deve ser vista a partir de uma avaliação de seu impacto na economiabrasileira e no financiamento da Previdência. A extinção da jornada 6×1, e sua substituição pela jornada 5×2 ou mesmo 4×3, traz óbvios benefícios para o trabalhador celetista individual (o servidor público já tem a jornada 5×2), mas cria na sociedade uma categoria privilegiada de trabalhadores em relação aos microempresários e, em especial, aos informais.
Tenho dúvidas se isso é positivo para uma sociedade já tão profundamente desigual como a brasileira. Tenho dúvidas, também, quanto ao impacto econômico da mudança nos diferentes segmentos empresariais, pois os custos de uma jornada menor serão inevitavelmente repassados aos consumidores, refletindo na inflação. Por outro lado, há experiências bem sucedidas de jornada 4×3 em países desenvolvidos, onde a jornada menor, mantido o salário, é compensada pelo aumento da produtividade.Entretanto, ou são desenvolvidos, ou são ricos.
Acredito que, no caso brasileiro, deveriam ser feitos estudos responsáveis e não demgógicos sobre esses impactos antes das decisões. O mundo do trabalho já está suficientemente conturbado pela evolução tecnológica que talvez requeira uma freada de arrumação, antes de uma mudança. Se uma jornada menor, por exemplo, se somar a outros fatores que levam o Capital produtivo a migrar com ainda maior força para a especulação financeira, o resultado final será prejuízo para o trabalhador e para o povo em geral.
Experiências no exterior indicam preliminarmente vantagens na jornada de 4×3. A Bélgica, por exemplo, foi o primeiro país da Europa a legislar sobre a semana de 4dias desde 2022, enquanto nos Emirados Árabes Unidos prevalece a semana de 4 dias para os servidores públicos desde o ano passado. Já na França não há uma legislação específica, ainda que, por acordo entre empresas e trabalhadores, seja cada vez mais comum a semana de 4dias. Cabe destacar também que, nesse país, prevalece por lei, desde 2000, a semana de trabalho de 35 horas. No Brasil, há registros, desde 2023, de mais de duas dezenas de empresas experimentando o novo regime de trabalho.
Entretanto, o projeto da deputada Erika Hilton encontra grande resistência de parte do empresariado brasileiro, especialmente nas atividades que exigem trabalho durante todos os dias da semana ou de forma contínua. Segundo Paulo Solmucci, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, “é uma proposta estapafúrdia e que não reflete a realidade”. E traria “impactos negativos para consumidores, sociedade e empreendedores do setor de alimentação”.
A seu ver, “as regulamentações estabelecidas pela Constituição e expressas na CLT são modernas e já trazem as ferramentas para garantir condições de trabalho dignas e justas aos colaboradores. A legislação atual permite que os trabalhadores escolham regimes de jornada adequados ao seu perfil, sem a necessidade de uma alteração constitucional que impacte a operação dos estabelecimentos em todo o Brasil, além de prejudicar os consumidores”.
Para Solmucci, existe uma demanda da própria sociedade de ter bares e restaurantes abertos sete dias da semana: “A mudança forçada na escala de trabalho teria impactos nessa oferta. Cerca de 95% do setor é de microempresas, que precisariam de reduzir o horário de funcionamento diante da mudança, já que a folha de pagamentos é um dos maiores custos para manter o empreendimento aberto”.
Nos 5570 municípios brasileiros que possuem bares e restaurantes são gerados seis milhões de empregos diretos, representando atualmente 2,7% do PIB nacional. Já segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 divulgados pelo IBGE, do total das despesas das famílias brasileiras com alimentação, quase um terço (32,8%) é dedicado a refeições fora do domicílio. Ou seja, a mudança iria impactar diretamente o bolso do consumidor.
Essa é a maior preocupação do presidente da Abrasel: o aumento dos custos operacionais, o que, por sua vez, elevaria os preços finais para o cliente, afetando a competitividade do setor, num momento que, segundo pesquisa da Associação, cerca de um quinto do ramo trabalha com prejuízo. Além disso, estima-se que amudança da jornada de trabalho poderia acarretar uma elevação de até 15% nos preços dos cardápios.
Outro setor empresarial que também está preocupado com os efeitos de uma eventual aprovação da PEC é o de beleza, produtos e serviços, que representa 4% do PIB e movimenta R$90 bilhões de dólares anuais. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Salões de Beleza, José Augusto Nascimento dos Santos, são 325.242 salões de beleza que poderiam ser impactados pela nova medida. “Estamos enfrentando uma crise sem precedentes de falta de mão de obra em todos os setores no Brasil. Falar em redução da jornada de trabalho nesse cenário é um desafio: quem assumirá os turnos descobertos em ambientes que operam continuamente, como shoppings? Além disso, os subsídios oferecidos pelo governo federal, embora importantes, podem estar desestimulando algumas pessoas a retornarem ao trabalho formal”, observa, com exclusividade para a Tribuna da Imprensa.
Por isso, ele reforça ser fundamental promover um debate aberto sobre a real intenção e os possíveis impactos desta PEC. “Discussões abertas e transparentes devem ser promovidas por meio de audiências públicas para garantir que as necessidades de empresários e trabalhadores sejam consideradas. Da forma como está apresentada, sem um debate mais profundo, a PEC pode trazer desafios significativos para setores que já sofrem com a escassez de mão de obra”, adianta o empresário.
No caso específico dos salões de beleza, o presidente da ABSB afirma que a implementação da PEC poderiagerar impactos negativos também na reposição de funcionários CLT para garantir o cumprimento da carga horária, demandando mais contratações, o que já está difícil para manter o ritmo de atendimento. “Contudo, para os profissionais autônomos da beleza, esse impacto tende a ser menor, pois eles geralmente administram a própria agenda de forma flexível”, continua.
Finalmente, segundo o presidente, com a nova regulamentação alguns estabelecimentos poderiam reduzir a oferta de horário de funcionamento, diminuindo o faturamento e afetando o atendimento ao público. “No final, todos, empresários, clientes e profissionais poderiam sentir os efeitos negativos dessa mudança sem a não existência de um bom estudo”, completa ele, esclarecendo que, hoje, são 1,2 milhão de profissionais da beleza com MEI, estimando-se cerca de 1,2 milhão de informais. Já em relação aos celetistas, são 800 mil colaboradores.
Foto:Marq